17 de abril de 2006

Introdução a Pintura e o Desenho

Pintar é uma mistura de cores incessantes. Misturar e ser absorvido entre a tela, o ar e o cavalete, o pintor está comodamente acolchoado em um manto cheio de lantejoulas. As lantejoulas luminosas que se desprendem das dobras deste manto criam um caminho, para ser percorrido somente pela sensação luminosa em terrenos pantanosos (em massas, sobreposições e arranhões de toda a espécie) no desespero de encontrar uma pérola em uma superfície cheia de lama.
Depois, com o trabalho concluído (um verdadeiro terreno trabalhado, com o sabor das dores dos dedos se apresenta) e o pintor percebe a chegada da luz (verdadeiramente) na secagem da tinta. Incrível! Eis a sua pérola, na concha ainda aberta para o beijo úmido da luz que ligeiramente, torna-se opaca. É bem sensível a mudança de estado das formas observadas na pintura. O pigmento desloca-se silenciosamente e em “bandos” até encontrar o seu lugar entre os grãos do papel ou nas filigramas acinzentadas do linho (a alpargatas de caminhoneiro) assim como as aves escolhem no final do dia um galho entre as árvores, para passarem a noite.
A pintura encontra-se nos reinos líquidos e secos. Uma passagem de luz sobre um terreno construído e a secagem. Uma estiagem lenta, como a mudança das estações. A pintura possui a densidade das nuvens sobre uma montanha (um gesto nítido de nanquim) o peso do mar e da igreja azul do céu, nos violetas, laranjas, brancos e rosas entre as dobras da terra, nos campos lavrados e cultivados do agricultor, entre os planos, entre as tempestades nos caminhos tortuosos do andarilho, nos círculos do sol e na luz da lua, em toda a atmosfera em que os olhos pousam no lugar perfeito, para a observação da paleta particular do pintor. Uma visão da natureza. Uma pose ereta diante do cavalete.
O pintor está sobre uma pedra. Nos ombros um manto colorido e nos pés cogumelos. Assim firme, o pintor sonha e percebe a “mudança” atento em frente a um grande papel na qual escorre a tinta. Na visão deste tipo de artista no plano, cria-se um lago onde antes não havia nada, só os brancos, somente os pontos luminosos de bocas abertas para o ar. A pintura reage entre a umidade e a sensação da secagem, petrificando a paisagem, reagindo a uma mudança natural na passagem e no deslocamento íntimo dos pigmentos.


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O desenho é o oposto da pedra. O desenho é o movimento “suave de uma tempestade” O desenho a lápis é a própria tempestade de nervos acinzentados que alimentam um rio sobre o papel. Tudo está relacionado com as linhas que moldam as formas, contornam a luz e criam barreiras instintivas no suporte, dando origem a espaços, como a água que jorra durante muito tempo em um rochedo. O lápis cai com a ponta sobre a folha como uma gota fria de chuva. Ali o grafite germina, deslizando em um corpo nu e branco. Inventa espaços. Sonha com limites rabiscados tendo como morada requintada um ponto de interrogação. E neste ponto, no gesto tosco de uma mão em equilíbrio constante com a grafia está, em certo sentido, a tensão luminosa. Sim o grafite reflete a luz e entre os minúsculos pontos existem passagens secretas nos tons de cinzas. São pequenas portas que abrem templos ocultos na lenta passagem granulada da luz, provocada pela vibração dos dedos, do pulso e de todo o braço do desenhista. Um aríate que arromba bruscamente as portas e libera a luminosidade para dentro de aposentos de cristal.
O desenho é a condução vibrante em direção a mundos inimagináveis, habitados por espíritos tensos e secos. Diferente do pintor o desenhista encontra-se nu, subindo livre as escarpas de um monte berrando e abrindo os braços no ar. Pode ser comparado a um louco que se atira ao mar, querendo ser um atum, querendo estar sempre vivo em uma corrente e em um “fluxo” para depois, ser atirado de volta na terra. A linha feita de lápis possui os desejos líquidos da água pura que seca. A luz passa através de uma corrente de sensações íntimas abertas no sangue. E o sangue ( líquido que coagula) é outra densidade vital que anima os músculos e os nervos para o movimento e situa-se entre o grão do lápis (nervos e tendões das mãos) até o saber. Existe, na observação dos espaços maculados pelas formas e pelos cheiros (aliados à memória) que escava o olhar, para depois emergir, como magma no ato simples do desenho, uma espécie de sabedoria que só é revelada pelo traço continuo e honesto. Requer certa habilidade no trato com esta linha pura, a primeira sobre a virgindade do papel. Esta “habilidade” só é adquirida com o tempo. Enquanto que a pintura utiliza-se de massa infante, para criar a realidade aplicada à outra realidade (a das cores), o desenho torna simples a observação de um “módulo”, uma forma composta exclusivamente por linhas. O módulo (a paisagem ou o corpo) ou nenhuma destas duas vertentes de representação insular mas apenas o “registro taquigráfico” de um movimento, em uma escala de valores acinzentadas próximos da pintura, (mas infinitamente distante dos seus propósitos) o desenho emerge. Cresce no gesto seco e preciso de um astrônomo que busca no céu os pontos cardeais e lá os encontra, solitários no cosmo. A pintura e o desenho possuem uma solidão diversa. Um contraponto premeditado pela vontade bruta (ou delicada) de se expressar nos valores tênues do coração. A linha conduz a emoção irrigada dos sentidos simples do papel. Toda a vida mundana, cotidiana, pode enquadrar-se nos gestos feitos a lápis de um diário. O desenho é o próprio diário desprovido de qualquer outra coisa a não ser a linha, o espaço e o tendão.


Ulysses, 17 de abril de 2006.

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